Sertões NL — competindo após 8 meses com a artéria totalmente ocluída.

“Quando a Perna Desliga: Como Descobri Uma Endofibrose Oclusiva e Enfrentei Uma Cirurgia Abdominal Aberta”

Por Felipe Miranda Pais
Treinador de Endurance • Fundador da Vélotime Training®

Aviso importante:
Este artigo descreve exclusivamente a minha experiência pessoal como atleta e treinador. Ele não substitui avaliação médica, diagnóstico ou orientação profissional. Qualquer caso semelhante deve ser analisado individualmente por médicos especializados.

1. Introdução: por que contar essa história

Em novembro de 2025, poucos dias após passar por uma cirurgia aberta rara, uma endarterectomia extensa da artéria ilíaca externa, reconstruída com patch de safena, eu finalmente entendi o tamanho da dificuldade que existe em se obter informações claras sobre endofibrose da artéria ilíaca externa no Brasil.

Embora exista algum material em português, ele é escasso, superficial e, sobre os casos mais graves (como o meu, com oclusão completa), há pouquíssimas referências, em geral relatos isolados de caso.

E apesar de ter estudado profundamente o tema, quero deixar registrado que eu jamais fiz essa jornada sozinho. Tive apoio de inúmeros médicos, pacientes que compartilharam suas histórias, amigos, atletas e pessoas que, de alguma forma, caminharam comigo nessa busca.


2. Outubro de 2024 — O dia em que algo mudou

Meu sintoma inicial não foi tão sutil assim. Após uma competição longa, em que fiquei mais de cinco horas em posição aerodinâmica, sob calor intenso e provavelmente com algum grau de desidratação, percebi uma fraqueza estranha na perna direita.

Mesmo depois de 7 a 10 dias de descanso, a fraqueza persistia e, olhando em retrospecto, a oclusão já era bastante evidente, porque a perda de força era grande. Com o tempo, essa fraqueza passou a aparecer não só em potências mais altas, mas mesmo ao sustentar potências aeróbias baixas, e se agravava ao tentar sustentar potência aeróbica mais elevada.

Naquele momento, eu não fazia ideia de que minha artéria ilíaca externa havia entrado em processo de oclusão total.


3. A fase mais frustrante — quando ninguém encontra nada

Entre janeiro e março de 2025, fiz todo o circuito clássico:

  • fisioterapia,
  • ortopedistas,
  • exames laboratoriais,
  • ressonância,
  • retorno gradual aos treinos.

Nada explicava a fraqueza. Os médicos incentivavam a continuar treinando, fortalecer, “dar tempo ao corpo”.

Eu tentava voltar ao meu ritmo normal, mas não consigo esquecer um detalhe fundamental, e aqui entra a visão técnica como treinador:

Meu FTP de topo, historicamente de 350–360 W, havia despencado para cerca de 260–300 W.

E pior: a durabilidade desse FTP, que normalmente me permitia sustentar 40–50 minutos, caiu para 20–30 minutos.

Ou seja:

  • minha força máxima (curta duração, “neuromuscular”) estava praticamente íntegra;
  • minha capacidade aeróbica sustentada, inclusive em intensidades moderadas, estava profundamente afetada.

Isso é praticamente um “carimbo” de problema vascular.

Mesmo assim, competi duas ultramaratonas: Ultra Brou e Sertões NL. Concluí ambas, mas muito longe do meu padrão.


4. “Felipe, isso parece endofibrose” — o ponto de virada

A hipótese surgiu de duas pessoas: um amigo médico que eu já havia treinado e a minha atleta Cris Castaneda, que convivia com a mesma lesão.

Foi ali que se formou, de forma natural, um pequeno grupo de estudo: eu, a Cris e a Dra. Marina Mourão.

A Cris já vinha investigando a mesma condição e trazia vivências e percepções valiosas. A Dra. Marina, por sua vez, trouxe clareza, ciência, calma e direção. Juntos, começamos uma jornada intensa de trocas, artigos científicos, consultas e comparações de casos, quase como um “grupo de pesquisa” montado pela necessidade e pela vontade de entender.

A Dra. Marina me explicou, de forma honesta, que o protocolo inicial indicado costuma ser conservador: manter força, manter os treinos e evitar cirurgias arriscadas ou desnecessárias. Era o correto do ponto de vista médico, mas profundamente difícil para alguém que dedicou a vida ao esporte e ao desempenho.


5. Julho a setembro de 2025 — Estudos, consultas e a sensação de estar cercado, mas ainda sem resposta

Com a confirmação da endofibrose e da oclusão longa, entrei na fase mais intensa da busca.

Consultei e conversei com muitos médicos cardiologistas, do esporte, vasculares e cirurgiões, incluindo:

  • Dr. Álvaro Razuk
  • Dr. Gustavo Kleinsorge
  • Dr. Rafael Santos (Pro Tour INEOS)
  • Dr. Leonardo Magalhães
  • Dr. José Carlos
  • Dr. Christian Drumond
  • Dr. Breno (Hospital Albert Einstein SP)
  • Dr. Gabriel Espinosa
  • Dr. Pabllo Namorato
  • Dr. Marconi Gomes
  • e, claro, a própria Dra. Marina Mourão.

Além disso, conversei com atletas operados, pacientes que compartilharam suas histórias, assisti vídeos, relatos, podcasts e li mais de 30 artigos científicos.

Apesar de tantos profissionais brilhantes, a verdade é que não existe um consenso simples e amplamente difundido sobre o tratamento ideal da endofibrose em oclusões longas.

Eu precisei “cavar fundo” para encontrar essas informações, e a maioria dos médicos que consultei não tinha real consciência dessa possibilidade para um atleta de endurance.

E tudo o que eu queria era clareza.


6. Quatro caminhos possíveis — todos com vantagens e riscos

Eu tinha essencialmente entendido quatro opções:

1. Angioplastia com balão farmacológico (DCB)

Menos invasiva, boa resposta inicial, mas com maior chance de reintervenção em oclusões longas. Não resolve adequadamente placas fibrosas densas e pode deslocar trombos.

2. Stent

Melhora imediata, mas com riscos relevantes: fratura, trombose, dificuldade futura para cirurgias e baixa durabilidade em atletas, por causa da mecânica do movimento.

3. Bypass (ponte)

Cirurgia de boa durabilidade, principalmente com safena, porém maior, com riscos próprios. Em geral, é reservada para falha da endarterectomia, dissecções extensas ou recidivas graves.

4. Endarterectomia com patch

Técnica preferida em muitos centros que tratam atletas na Europa e nos EUA. Preserva a artéria nativa.

Em oclusões longas ainda há poucos casos descritos no mundo, mas era exatamente a opção que eu mais gostaria que fosse possível.


7. O vídeo do Dr. Luis Leon — e o renascimento da esperança

Em outubro de 2025, encontrei um vídeo do cirurgião americano Dr. Luis Leon, apresentando o caso de um triatleta com uma oclusão muito semelhante à minha.

Ele tratou com endarterectomia e patch, recuperou o fluxo e o atleta correu uma maratona 32 dias depois, algo que foi além da recomendação clássica de seis semanas de atividades moderadas.

Eu decidi entrar em contato.

Ele me respondeu rapidamente, estudou meu caso, viu minha angiotomografia e confirmou que parte da oclusão poderia ser trombo organizado, algo que favorecia a endarterectomia.

“Felipe, se fosse meu paciente, eu tentaria a endarterectomia como primeira linha.”

Essa conversa mudou tudo. Eu precisava encontrar alguém no Brasil capaz de tentar.


8. O encontro com o cirurgião certo — Dr. Daniel Mendes Pinto

Eu ainda não tinha consultado o Dr. Daniel Mendes Pinto, mas sabia de sua reputação, da confiança que muitos amigos médicos depositavam nele e do fato de ele ter atendido a Cris uma semana antes, com a mesma lesão.

A Cris, inclusive, foi essencial nessa fase. Ela operou no dia 05/11, exatamente no dia do meu aniversário, e me deu um dos presentes mais especiais daquele período: a notícia de que a cirurgia dela havia sido um sucesso absoluto.

Isso me trouxe paz e a sensação de que eu finalmente estava no caminho certo.

O Dr. Daniel é altamente competente tecnicamente, acostumado com casos vasculares complexos, e já havia tratado endofibrose induzida por radioterapia, uma variante ainda mais rara e difícil.

Ele estudou profundamente a endarterectomia em atletas e chegou a discutir nuances da técnica com o Dr. Victor Bilman, autor de um dos poucos artigos no mundo descrevendo endarterectomia em atleta com oclusão por endofibrose, exatamente o meu padrão de lesão.

Quando entrei em seu consultório, senti pela primeira vez em 13 meses uma tranquilidade diferente. Ele não levantou mais problemas do que soluções. Pelo contrário, trouxe clareza técnica, segurança e disponibilidade.

Minha cirurgia ficou marcada para o dia 13/11.


9. A cirurgia — técnica, complexidade e sucesso

Minha endarterectomia foi longa e desafiadora. A artéria estava completamente ocluída por:

  • fibrose crônica densa;
  • trombo organizado antigo;
  • um segmento acometido de quase 10 cm.

O Dr. Daniel abriu toda a extensão necessária, removeu tudo, limpou meticulosamente e reconstruiu a artéria, desde a transição com a artéria ilíaca comum até a ilíaca externa, com um patch da minha própria safena.

Quando acordei, ouvi as palavras mais importantes desta jornada, ditas pelo Dr. Daniel e pela Dra. Marina, que fez questão de acompanhar toda a operação:

“Felipe, deu tudo certo.”

Me emocionei profundamente.


10. O que aprendi — técnica, mente e espírito

Do ponto de vista técnico, aprendi:

  • como a compressão mecânica crônica remodela a artéria;
  • como o trombo se mistura à fibrose;
  • por que uma estenose pode evoluir para oclusão;
  • por que a endarterectomia é, quando possível, a opção mais anatômica e potencialmente mais durável, mesmo sem grandes séries científicas, já que é uma lesão rara e muito ligada a esportistas.

Do ponto de vista emocional, aprendi que:

  • a incerteza machuca mais do que a cirurgia;
  • informação desencontrada gera medo;
  • a coragem nasce quando o propósito é maior do que o medo.

Do ponto de vista humano e espiritual, aprendi que:

  • a medicina é muito mais do que técnica;
  • médicos podem ser instrumentos de transformação;
  • amizades verdadeiras aparecem no caos;
  • minha família é minha maior força.

11. Minha mensagem final — aquilo que realmente importa

Hoje é 19 de novembro de 2025. Estou apenas no sexto dia pós-operatório.

Ainda não sei quando voltarei a competir, quando minha perna estará pronta, qual será meu nível físico ou se vou precisar intervir novamente no futuro.

Mas posso afirmar, com absoluta consciência: tudo isso transformou minha vida.

E não foi só a cirurgia. Foram as pessoas. As conversas. A fé. A paciência que precisei aprender. A humildade de aceitar ajuda. Minha esposa, meu filho, meus amigos, meus atletas, minha equipe.

Ficou ainda mais clara para mim a certeza de que o esporte é essencial na minha alma, mas não é tudo que me define.

Se este texto ajudar um único atleta, um único médico, um único treinador, já valeu a pena escrever.

Eu sigo com fé, esperança e gratidão. E sei que vou voltar. E, quando voltar, será com propósito renovado.


Aviso Legal — Importante
As informações apresentadas neste artigo têm caráter exclusivamente informativo e representam a minha trajetória pessoal no diagnóstico e tratamento da endofibrose da artéria ilíaca externa. Elas não têm a intenção de fornecer, substituir ou complementar avaliação clínica, diagnóstico médico ou recomendações terapêuticas.

Condições vasculares, especialmente em atletas, variam amplamente entre indivíduos e exigem análise específica por médicos qualificados. Recomenda-se que qualquer pessoa com sintomas semelhantes busque atendimento profissional antes de tomar decisões sobre saúde ou tratamento.

Sobre Felipe Miranda

Felipe é fundador da Vélotime Training®, credenciado TrainingPeaks™, coach e bike fitter profissional desde 2005. É competidor há 25 anos, finisher 3 vezes da ABSA Cape Epic e 9 vezes da Brasil Ride Bahia.

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